15.9.07

Poesia solo



Em 1995 a Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte lançou, em CD-Rom, em parceria com a produtora Ciclope, o primeiro número da revista eletrônica Zapp Cultural. Revê-la tantos anos depois permitiu-me reler, com o mesmo encantamento de 7 anos atrás, uma pequena jóia de sensibilidade poética e consciência intersígnica: o livro Regiztros Efêmeros, de Beatriz de Almeida Magalhães – o “z”, em “registros”, prefigurando o assunto da curiosa obra, que ressemantiza, em formato híbrido de poema-ensaio, os sinais grafopoéticos, feitos com giz branco, das perambulações de um sujeito negro e anônimo pela Belo Horizonte das décadas de 1970/80 – com uma nova “aparição” em 2000.

A operação de leitura do texto de Beatriz Magalhães se impôs, para mim, como um exercício de tradução intersemiótica. A precariedade do meio eletrônico, à época da feitura da revista, obrigou-me a criar outras formas de ler o livro para além da passividade exigida pelo CD (que, de “interativo”, não oferece mais que a possibilidade de clicar no ícone situado no canto inferior esquerdo da tela para ter acesso a novas fotos). Isso empobrece demais a fruição desse poema-ensaio, cuja estrutura iconiza a “callgrafia erótica” – porque em jorros, desbordante –, a “calgrafia cáustica” de nosso fazedor sem nome e sem documento. Seria preciso ler esses Regiztros Efêmeros de outra maneira, com as palavras respirando desgovernadas, como certamente terão surgido a Beatriz no momento primeiro de sua contemplação da signagem porno e ludográfica do poeta de rua.

Como não me foi possível imprimir o e-book de Beatriz, tive que copiá-lo inteiro à mão, dessa forma integrando-me a uma tão ampla quanto intrincada rede de relações produtivas de leitura: minha “manuscritura” é, assim, a tradução de uma das muitas possíveis traduções dos signos que, sabe-se lá por quê, o vate errante de Belo Horizonte traduzia com obstinado rigor. Escrevi para reler, ler direito. Ao fim da jornada, senti-me como um copista medieval dotado, extraordinariamente, de habilidade manual e capacidade de decifrar o que copia. Valeu a tinta gasta, o redesenho de palavra por palavra – em outro arranjo, aberto a novas leituras, “mais minhas”, quem sabe. Infelizmente, para rever as fotos de da própria Beatriz, de Gerson Alvim Pessoa e de Rodrigo Andrade que documentam o texto, só mesmo recorrendo ao CD-Rom.

Vamos ao poema. No inferno da urbe-mais-que-pólis, Beatriz guia o leitor desejoso de se embrenhar na selva selvagem de uma imaginação delirante que, à sua maneira, reordena as coisas, os seres, nomes e números do mundo (impossível não lembrar Bispo do Rosario e, mais apropriadamente, talvez, o Profeta Gentileza). A leitora-poeta escancara para o leitor sensível uma poética estranha e bela que “cobre a cidade/ com seu falo/ logomarca”, em “seminal semiologia” (em linguajar popular, o tal “falo logomarca” é um muito bem traçado “caralhinho”, com sua ponta redonda mirando, ciclópico, o infinito). Essa maneira de se apossar de uma cidade, de possui-la, me faz pensar na quadra final de um poema de Mário de Sá-Carneiro, Abrigo, que expressa, em termos desbragadamente eróticos, o amor do modernista português por Paris: “Mancenilha e bem-me-quer,/ Paris – meu lobo e amigo.../ Quisera dormir contigo,/ Ser todo a tua mulher!...”

A diferença é significativa: Sá-Carneiro abre-se, receptivo, feminino, ao encanto da velha cidade, que ele masculiniza, enquanto o poeta andarilho e fescenino exibe, como emblema de uma eroticidade voltada tanto para a fruição gozoza do corpo da cidade quanto para a “função reprodutora” – de sentidos – que ele ora reitera, ora altera –, além de frases de brasileiríssima, macunaímica safadeza (“AVIZINHA/ AIRMA/ ATIAFILHAAPRIMAA MAEA SUBRIA/ DE PELE METEU/ CUM BRANCO BRANCO/ CUM MORENO MORENO/ DA VARA/ DESITAMAIO”), um pênis “no mais das vezes ereto”. O “jorro branco de versos” como os citados acima, que “escorre pelo muro/ faz ângulo na calçada/ desce o meio fio” e “esparrama no asfalto/ anáforas/ aliterações”, é que submete e “emprenha furtivo” a cidade: torna-a “resignada”, “re/signada”, como conclui Beatriz Magalhães.

E a poeta-leitora não pára aí. Querendo descobrir a origem (“daqui ou de fora”) do poeta sem eira nem beira, Beatriz propõe adivinhas ao seu provável leitor: “Poeta esse de onde?/ Um poeta de SP?/ Um poeta de BA?/ Um poeta de MG?/ Um poeta de BH?// Um poeta de Confins?/ Um poeta das redondezas?/ O poeta das voltas redondas?/ O poeta dos passos fundos?/ O poeta das contagens?/ Nascido e criado/ em qual cidade?/ Em qual estado?/ Em que estado?/ Em que tempo? Em que idade, meu Deus?”. Respostas possíveis: sim, um “poeta das redondezas”, ou da circularidade de suas grafoepifanias; sim, um “poeta das contagens”, ou da catalogação minuciosa das coisas do mundo; sim, um poeta em “estado” de graça e de total disponibilidade em relação à hipótese – restrita às crianças, aos poetas e aos loucos – de reinventar o mundo mesmo que, por não dispor dos instrumentos de que habitualmente se vale um poeta, veja-se obrigado a poetar nas ruas e muros da cidade; sim, um poeta “dos passos fundos”, a perseguir obsessivamente o “caminho da perda”, como Vielímir Khlebnikov, vagamundo russo que se autodenominava “presidente do Globo Terrestre”, e Antonin Artaud, nascido na França, renascido em Bali e no México e desnascido por onde quer que tenha passado. Sim, um poeta “sem tempo” a perder com a péssima idéia que o mundo faz de seres humanos como ele, capazes de perder até o que não têm, só para poderem continuar a criar suas “nonadas”, seus “inutensílios”. Sim, “um poeta de/ extrema necessidade de/ andaraí/ viramundo/ ivirapoeira”, (in)completa Beatriz.

O mundo, o mundo. Mas que diabo será “o mundo”? E que serventia tem a arte, sobretudo quando se trata de uma arte que sequer aspira a tal condição? Respondo não com uma rima, mas com uma citação extraída de um ensaio da filósofa alemã Hannah Arendt intitulado “A permanência do mundo e a obra de arte”: “Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade e que, ademais, por serem únicos, não são intercambiáveis, e portanto não são passíveis de igualação através de um denominador comum como o dinheiro; se expostos no mercado de arte, só podem ser apreçados arbitrariamente. Além disso, o devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é “usá-la”; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto dos objetos de uso comuns para que possa galgar o seu lugar devido no mundo.” (A Condição Humana, pp 180-1, Ed. Forense Universitária).

Para Arendt, “as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; sua durabilidade permanece quase isenta ao efeito corrosivo dos processos naturais, uma vez que não estão sujeitas ao uso por criaturas vivas – uso que, na verdade, longe de materializar sua finalidade inerente (como a finalidade de uma cadeira é realizada quando alguém se senta nela), só pode destruí-la. O que nos autoriza, então, a pensar a “graforréia” de um “talvez-poeta” (copirráite Tião Nunes) visual que nem nome tem, como arte?

Força é lembrar, neste ponto, que o ensaio de Hannah Arendt é datado de 1958, quando eram escassos, mesmo nos contextos mais adiantados, estudos de fôlego sobre a performance art que a tratassem como gênero artístico autônomo e “respeitável”. Para nos restringirmos à Europa, apenas em 1964 Joseph Beuys participa pela primeira vez de uma edição da Documenta de Kassel. É, todavia, da perspectiva da performance que se pode considerar a “obra” do poeta-andarilho. Uma arte pobre (“Pop povera concreta/ solidão”, diz Beatriz), antiartística, efêmera, e por isso mais “inútil” que qualquer outro “inutensílio”. Tão “inútil”, diga-se, que o sujeito-negro-com-mão-branca-de-giz autor dessas proezas sígnicas sequer as assinava, nem que fosse só para ter o gostinho de ver seu nome “desaparecendo/ com a ação do tempo/ ou com os acessos dos moralistas” junto com suas garatujas.

“Discreto exibicionista/ de esquinas/ e contra-esquinas”, nosso fugidio “Senhor Ninguém” só queria nos mostrar “a qualquer momento/ seu verbo duro”, Beatriz disse. Para quem queria tão pouco, acabou nos dando bem mais: com ele, com o que restou de sua ação poética, aprendemos a prática de uma “estratégia de destruição, na cidade, do seu sistema de ordem” (Lucrécia D´Aléssio Ferrara, Ver a cidade, Ed. Nobel, 1988). Sua performance é, em suma, uma outra forma de perceber a cidade e, mais que isso, de tentar alterar seus significados e usos. O nome disso talvez seja poesia. Ou, para dizer como Beatriz de Almeida Magalhães, “poesia solo”. [Este ensaio integra o meu livro Palavras a olhos vendo, finalmente no prelo].

Um comentário:

diovvani mendonça disse...

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