26.4.09

Três muitas coisas

Outro dia o Chico de Paula me deu um presente que me emocionou demais: cópias das vocalizações que fiz – a pedido dele e da Beth Miranda, para um projeto a respeito do qual não sei se posso falar – de poemas de Arnaldo Antunes e das que AA fez de coisas minhas. Oxalá esses vídeos sejam um dia ouvidos por outros olhos e vistos por outros ouvidos. Ou vice-versa. “Ouvê-los” me reaproxima da hipótese de um mundo regido não pelo tripé dinheiro/pressa/competição, mas por valores quase totalmente superados, hoje, como a delicadeza, a generosidade e a escuta do outro §O Atlântico em movimento: travessia, trânsito e transferência de signos entre África e Brasil na poesia contemporânea em língua portuguesa”, tese de doutoramento de Prisca Agustoni, defendida em 2007, na PUC-MG, e ainda inédita, trata com rara profundidade, erudição nada pedante e cumplicidade linguageira a produção de 6 poetas (os brasileiros Ronald Augusto, Edimilson de Almeida Pereira e Ricardo Aleixo, os angolanos Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho e o moçambicano Luís Carlos Patraquim). Trata-se, sem favor, de documento incontornável para quem se propõe a pensar as poéticas contemporâneas para além do relativismo pseudo-teórico – de tipo politicamente correto – que infesta a academia § A ideia de uma cena contemporânea, isto é, de um teatro aberto aberto à experimentação e ao diálogo com outras disciplinas artísticas e com a vida, eis a base do pensamento em ação do encenador e pesquisador Luiz Carlos Garrocho, que acaba de deixar a Diretoria de Teatros da Fundação Municipal de Cultura. Depois de um longo período dedicado a verdadeiras batalhas campais em prol da ampliação dos espaços para a arte que não se rende à mercancia – nem à verborreia esquerdofrênica –, Garrocho retoma suas atividades como criador-pensador teatral e desenvolve o olho-de-corvo, seu novo blog-trincheira §

23.4.09

OGUNHÊ!

"Dia 23 continua sendo/ dia de Cowboy Jorge", já cantou Benjor. Dia, aqui em casa, de dar vivas ao Senhor Ogum, pedindo ao grande Ferreiro e Guerreiro para retribuir aqueles que porventura ocupam seu tempo comigo, dando-lhes em dobro o bom ou o ruim que lançaram em minha direção. Dia de dizer em voz alta este cantopoema que publiquei em 1996, no livro A roda do mundo:


OGUM


Ele avança
e até a terra treme.
Ogum com suas
quatrocentas
mulheres
e seus mil
e quatrocentos
filhos.
Alguém algum dia
falou enquanto
ele falasse?
Todos viram
os riscos
de corça
selvagem
que ele tem
na pele.
Toda aldeia
onde pisa
é um campo
de guerra.
Ogum mata
o rei e o povo
e aí acampa.
Ele abre estradas
por onde seus filhos passam.
Rei de Irê. Rei que ri
do ferro estorricando
o falo do macho e a xota
da fêmea.
Faz das cabeças
dos adultos
gongos
e usa as das crianças
como cabaças.
Ogum Iremojê
passeia com uma serpente
no pescoço.
Ogum Onirê, meu marido.
Alguém algum dia
ouviu sua voz suave?

18.4.09

Rádio Sarduy

Densos exercícios de alteridade, os orikis de Severo Sarduy estruturam-se como décimas (dez versos de sete sílabas), solução rítmica que revela-se bastante eficaz quanto à indicação dos vínculos com a "voz viva" – sem a qual não se produz a relação com a divindade, no âmbito das religiões de origem africana. O poeta não nos dá a mera transcrição "letrada" da cosmogonia nagô: a estratégia que ele adota, bem mais sutil, é fundir à musicalidade inerente a uma determinada prática vocal de extração popular a imagética da religião dos orixás, com sua noção de tempo circular e uma ética do excesso – via repetição, propiciadora do transe –, a qual se pode, sem embargo, definir como próxima da estética barroca, como sugere este fragmento do cântico VII, dedicado a Oyá: "(...) Su passo, que se apresura, y el mármol barroco y serio,/ sellarán todo misterio./ Guarda, tras nueve colores,/ guardañas, círios y flores,/ la dueña del cementerio." Como não perceber, aí, para além da exuberante imagética, a presença da voz como elemento de composição, a conduzir a estonteante harmonia fônica que não deixa qualquer dúvida quanto ao fato de que a página impressa, para Sarduy, é dotada de uma nítida dimensão partitural? A voz, para poetas como Severo Sarduy, é o que assegura a possível continuidade do riocorrente da linguagem: o poema é, de tal perspectiva, lugar de passagem para o desrecalque de uma energia vocal que séculos de primado do logocentrismo não lograram domar inteiramente. Sarduy compõe, com e para a voz, um conjunto de 6 roteiros que exibem sua pertença à linhagem dos criadores empenhados em borrar as fronteiras artísticas: se se pode definir tais textos como teatrais (e eles, com efeito, foram agrupados, na Obra completa, sob a rubrica "Teatro"), também é legítimo reafirmar seu matiz radiofônico. Especificamente radiofônico, eu diria, se minha concepção pessoal de rádio não apontasse justo para a relativização, quando não para a total anulação, do que possa haver de "específico" nas práticas criativas contemporâneas. Para tornar ainda mais complexa a possibilidade de classificação desses roteiros, seu autor nos diz, no prólogo de um dos mais realizados, "La playa", que as "variações sobre um tema" que o organizam implicam "uma estrutura musical".
[Os fragmentos acima pertencem ao ensaio intitulado “Rádio Sarduy”, que escrevi, a convite da radioartista e ensaista Lilian Zaremba, para integrar a coletânea Entreouvidos: sobre rádio e arte, a ser lançada em setembro próximo. Também participam do livro Janete El Haouli, Marcos Scarassatti, Steve Berg, Luiz Camillo Osório, entre outros].


16.4.09

O Rio



Saudades da Guanabara
eu mato aqui.
E aqui.

14.4.09

ZUMTHOR, Peter


















Na Fumec, todas as segundas e terças, encontro, respectivamente, as turmas de Design Sonoro I e II. Comecei, há algumas semanas, a trabalhar composição com o pessoal que teve o primeiro contato com a disciplina neste ano. A tarde de ontem seria dedicada à reestruturação de fragmentos dos primeiros 6 minutos da trilha sonora do filme Fahrenheit 451, de François Truffaut. Para introduzir a reflexão sobre “materiais”, apanhei na estante um livro de que gosto muito, Pensar a arquitetura (ed. Gustavo Gili), do arquiteto suíço Peter Zumthor.

Tendo chegado a Zumthor há cerca de 3 anos, movido, confesso, menos pelo amor à arquitetura – que não é pequeno – do que pela curiosidade trazida pelo sobrenome do arquiteto (é sabido o quanto meu interesse pelas poéticas da corp/oralidade, desde o início da década de 1990, deriva das leituras do medievalista, poeta e prosador Paul Zumthor), decidi apresentar aos estudantes, à guisa de estímulo para o trabalho ao qual se dedicariam, um fragmento de Pensar a arquitetura intitulado “Do material que é feito”.

Leiamos juntos o primeiro parágrafo: “Os trabalhos de Joseph Beuys e de alguns artistas do grupo da arte povera têm para mim algo de revelador. O que me impressiona nestas obras de arte é o emprego preciso e sensual do material. Este parece estar enraizado num saber antigo do uso dos materiais pelo homem que revela, em simultâneo, a sua verdadeira natureza para além do culturalmente transmitido”.

Feito o silêncio necessário para apreender devidamente a colocação zumthoriana, passemos ao segundo parágrafo: “No meu trabalho tento empregar os materiais de uma maneira semelhante. Penso que estes, no contexto de um objeto arquitetônico, podem assumir qualidades poéticas. Para tal efeito é necessário criar no próprio objeto uma coerência de forma e sentido; uma vez que os materiais em si não são poéticos”.

Me agrada profundamente compartilhar com os estudantes tal constatação: nenhum material é, “por natureza”, poético. Nem “musical”. “O sentido, que se deve criar no contexto dos materiais”, explica-nos Peter Zumthor, “encontra-se para além das regras de composição; e também a sensibilidade, o cheiro e a expressão acústica dos materiais são apenas elementos da linguagem que temos de utilizar. O sentido nasce quando se consegue criar no objeto arquitetônico significados específicos de certos materiais que só neste singular objeto se podem sentir desta maneira.”

Acompanhemos, agora, o quarto e último fragmento da reflexão do arquiteto: “Quando trabalhamos com este objetivo, temos sempre que voltar a perguntar, o que é que um determinado material pode significar num determinado contexto arquitetônico. Boas respostas a estas perguntas podem tornar claro, sob uma nova luz, o modo como estes materiais costumam ser utilizados e as suas próprias características sensoriais e significativas. Se o conseguirmos, os materiais na arquitetura poderão transmitir som e brilho”.

Lido o texto, promovi uma breve reflexão com os estudantes e os liberei para voltarem ao trabalho de seleção dos materiais, a partir do qual deveriam produzir uma nova peça sonora. Pela escuta dos primeiros trabalhos que me chegaram, creio que o pequeno escrito de Zumthor foi, quando nada, levado em conta.

Voltei para casa feliz, com a cabeça já ocupada por considerações de outra ordem. Agora há pouco, leio na capa da Folha de S. Paulo de ontem a notícia de que Peter Zumthor venceu a 31ª edição do Pritzker, prêmio máximo da arquitetura mundial – equivalente “a um Nobel”, como dizem os jornalistas. A manchete da “Ilustrada” recupera da dimensão de chavão a que foi lançada nas últimas décadas uma frase que define bem o ideário de Zumthor: “Menos é mais”.

Nem uma frase pode ser mais precisa para definir o trabalho desse ex-marceneiro e ex-mestre de obras que, como recorda o arquiteto Guilherme Wisnik, também na “Ilustrada” de ontem, “raramente faz maquetes ou desenhos mais ilustrativos. Contra a representação, prega a necessidade da experiência direta na relação com as coisas”. Rara voz a clamar em favor da poiesis num contexto de TOTAL rendição à mercancia, Peter Zumthor, aos 65 anos, vive recluso em Haldenstein, uma vila nos Alpes suíços cuja população não chega a mil pessoas. Menos é mais. [Na primeira foto, detalhe das Termas de Val, na Suíça, uma das mais importantes obras do arquiteto].


Notícias

Enviei ontem para a redação da revista Continuum, editada pelo Itaú Cultural, um poema inédito, "Babeladormecida", que fará parte do número de maio da publicação, dedicado ao tema da torre de Babel. A pedido da revista, compus, além de uma peça gráfico-visual, sua versão sônica: gostei tanto do resultado que resolvi incluir o poema no Modelos vivos, a esta hora já nas mãos do seu mais que provável editor. Explico a prudência da última frase: vivi, há pouco mais de um mês, o pesadelo da descoberta de que a Segrac, editora indicada por mim, quando da inscrição do livro no Programa Petrobras Cultural, em 2007, fechou as portas.

Foi um duro golpe, já que, à exceção de A roda do mundo e Quem faz o quê?, todos os meus livros foram feitos em parceria com a Segrac (uma excelente gráfica que, eventualmente, também editava). Parceria mesmo: eu era, ali, mais do que um autor/editor em busca de preços módicos. Em cada uma de minhas inúmeras e longuíssimas incursões ao amplo, mas acolhedor prédio da rua Catumbi, no Caiçara, aprendi muito, no que diz respeito à lenta e meticulosa transformação de uma arte final em objeto palpável.

Meu débito para com a equipe da Segrac é tão grande que, ao receber da Petrobras a informação de que teria que indicar uma editora, não pensei duas vezes. Minto: foi justo por ter pensado MUITO que decidi não procurar uma “editora de verdade”, daqui ou de fora, dessas que NUNCA se interessaram pelo meu trabalho. Ou das que já me deram calotes...

Passado o “pesadelo”, escolhi dentre mais de trinta editoras (gracias, Fantini!) aquela cuja orientação editorial mais se aproxima dos meus propósitos com relação ao Modelos vivos: uma que pudesse vê-lo não com os olhos de rapina com que a maioria olha, mas com interesse real pelo que o livro representa para mim – e para o contexto estético-cultural em que ele se insere.

A conversa segue boa, mas ainda é cedo para dizer mais que isso. O importante é que o lançamento já tem data marcada: agosto. E que antes, em maio, mostro aqui em Belo Horizonte um espetáculo com canções baseadas nos poemas do livro, mais algumas composições "avulsas": Música para modelos vivos movidos a moedas. Aguardem novos comunicados. E tenham uma boa semana.

6.4.09

Iná!



















“Iná! Inaê! Janaína! Iemanjá!”, foi o que gritou – literalmente – ao telefone o poeta Waly Salomão, quando eu contei a ele, em resposta à pergunta (sobre filhos: se eu tinha algum) que me fizera, à queima-roupa, o nome da minha então única filha. Era 1995, e Iná saltara para fora da barriga da Sandra havia poucos meses, talvez quatro ou cinco, e tudo por aqui era só alegria. Flora demoraria 7 anos para chegar e ocupar o lugar que é só dela, trazendo novo sortimento de alegrias. Hoje, dia 6 de abril, Iná completa 14 anos e, inteligente e sensível como sempre foi, não é, ainda assim, capaz de perceber o quanto sua presença neste mundo enche de saúde, amor e poesia este velho coração de pai.