8.1.09
tempo, tempos
Ponteiros – Fora de casa, estou sempre com um relógio atado ao pulso. Consulto-o a intervalos mais ou menos regulares. Trata-se, apropriadamente, de um tique, já que se alguém me pergunta “Que horas são?” não sei responder sem olhar de novo o simpático aparelho. Viver não é preciso, já diziam os argonautas portugueses, de acordo com Fernando Pessoa. Viver é ao léu. Não ligo para a metáfora “tempo”. Me agrada é a dança dos ponteiros.
Música – O relógio mecânico e as barras de compasso são contemporâneos. Ambas as invenções datam de fins do século 14. Se é certo que a escuta regular da convenção “tempo” propiciou o surgimento da notação musical, estudiosos como o físico Géza Szamor (citado por Heloísa Valente no livro Os Cantos da Voz – Entre o Ruído e o Silêncio) afirmam que foi a música o parâmetro utilizado no estabelecimento da noção de “tempo medido”. Tomara! Quantas vezes saímos de casa para trabalhar baseados na duração da música que toca no rádio... Dizemos para nós mesmos, embalados por aqueles sons que já conhecemos de cor: “Quando acabar essa eu saio...”
Viola – Uma das mais impressionantes instalações de Bill Viola intitula-se Heaven and Earth. Dois monitores de vídeo preto e branco, um suspenso sobre o outro, numa estrutura tipo coluna – mais um pouco e se tocariam – mostram imagens que se interpenetram, silenciosas: a mãe de Viola agonizante; o filho do artista nascendo, nove meses depois. No Eclesiastes (trad. Haroldo de Campos) se lê: “Geração-que-vai/ geração-que-vem/ e a terra/ durando para sempre”.
Agoras – “Agora mesmo passa outro.” (Alguém, num ponto de ônibus). “Agora só depois de almoçar.” (Um adulto, para uma criança que insiste em ver televisão antes do almoço). “Agora mesmo fulano perguntou por você.” (Qualquer falante do português-brasileiro). “Agora você vai ver.” (Idem). “Tudo ao mesmo tempo agora.” (Arnaldo Antunes). “Passaram-se agoras” (Dorival Caymmi). “A imanência imediata do agora.” (Octavio Paz).
Korf – A muitos que conheço agradaria um relógio como o de Korf, “não-personagem” do alemão Christian Morgenstern (1871-1914). O que singulariza tal relógio é o fato de, nele, os ponteiros girarem “em dois pares – um a mais”. Mais importante ainda, “giram também para trás.// Se marcam duas – marcam as dez; se apontam o três – apontam o nove”, bastando “fixá-los, sem viés”, que “o medo ao tempo se remove.” Não apenas o medo ao tempo é removido, comenta o poeta e tradutor Sebastião Uchoa Leite (que observa a existência, em Sylvie and Bruno, de Lewis Carroll, de “um relógio mágico que reverte a ação do tempo, de modo que os acontecimentos se passam de trás para frente”). Resulta da inusitada invenção de Korf nada menos que a “anulação do tempo”.
A refutação do tempo – Eis uma tarefa que só aos grandes cabe cumprir. Borges, que amava Shopenhauer, assinaria de bom grado esta afirmação do filósofo alemão: “Ninguém viveu no passado, ninguém viverá no futuro: o presente é a forma de toda a vida, é uma posse que nenhum mal lhe pode arrebatar.”
O tempo circular – “Aquele que acertou ontem a pedra que só hoje atirou.” Essa proeza se credita a Exu, o que propicia ou embaralha o comércio entre os deuses e os homens. Como é possível? Não é possível. Exu é o impossível.
PS: Estes fragmentos são antigos, do ano 98 do século passado, e foram publicados pela primeira vez na coluna que mantive entre 1997 e 2002 no caderno “Magazine” do jornal O Tempo. Já os reproduzi no endereço anterior do jaguadarte, como hão de lembrar os mais memoriosos. Valho-me da existência deles para finalmente dar partida às postagens nesta posse que iconiza, vazia como tem estado, o meu desejo de silêncio, que só faz crescer em meio ao completo horror – o Mal – que o noticiário internacional nos lança na cara todos os dias, com os relatos das ações genocidas de Israel na Faixa de Gaza. A foto é produto de um erro na manipulação da máquina, e foi feita durante uma viagem que fiz a Buenos Aires em 2006. É isso. É só isso.
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Um comentário:
isso mesmo, Ricardo. todo silêncio parece ter seu des/motivo. abração
Cândido.
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