9.1.09

Mais vida conversável


DIÁRIO DO NORDESTE - Caderno 3 - 09.01.2009

COLUNA - por Manoel Ricardo de Lima

Um céu inteiro para nadar

Certa leitura da poesia produzida no Brasil tende a uma espécie de padronização crítica “carioca” (sim, assim mesmo, entre aspas, claro), o que tende a uma repetição da geografia dos usos de Machado de Assis, algo entre a Glória e o Aterro, não tão mais longe que isso. Não há nada na imensa linha de mar e costa nem muito menos território adentro, não há distância nem poesia praticada em nenhum outro lugar deste país, tanto que a poesia dita “marginal” da década de 1970 aconteceu apenas lá, tanto que a década de 1990 esbarra também numa produção que foi feita apenas lá (basta ver, por exemplo, a antologia “Esses Poetas”, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, 1998). Cumprir outra vez uma missão bandeirante, nem pensar. Uma etnografia do contato é impensável. E se tal se dá, esbarra em Perdizes ou na Av. Paulista, talvez Pinheiros, ou no máximo na Consolação, talvez Capão Redondo. De outro lado (e sendo muito grosseiro, claro, com esta questão), há uma festa imponderável fascinada com o que se vinculou nomear de periferia, com um atrito falseado que re-elabora uma fala lamurienta da falta, da precariedade, da miséria (haja visto a “nova” cinematografia nacional com pauta nisso e sustentada a ferro e fogo com os jorros do dinheiro público). Todo o resto pode virar uma cobrança inefável para reafirmar uma hierarquia, para dizer de uma historicidade fixada nesta geografia e de alguma categorização imprecisa, mas segundo consta até aí, dizem, necessária. Mesmo que se possa, também, é claro, é uma questão de sobrevivência, rir disso.

Mas não é outra coisa senão um sintoma, veja-se o livro de Luciana di Leoni, uma pesquisadora argentina, sobre algo da poesia de Ana Cristina César – “As tramas da consagração” – ao indicar na bibliografia que um trabalho fundamental sobre a poesia de Ana, o livro de Maria Lúcia de Barros Camargo, “Atrás dos Olhos Pardos”, talvez a primeira tese que se tem notícia feita sobre esta poesia no Brasil, tenha sido editado no Rio de Janeiro quando o foi de fato em Chapecó, no oeste de Santa Catarina, na coleção Argos da Universidade de Chapecó. Lapso, claro, mas que diante do esforço nenhum pra saber do que se disse e se diz sobre a poesia de Ana Cristina César fora da geografia de Machado de Assis (ou da poesia concreta, esta outra geografia que assombra meio mundo paulista não se sabe ainda porquê, quando já é um traçado posto e incorporado) passa a ser um dado que pode ser lido, imprecisamente, como um sintoma deflagrado por uma única pista: de onde vem a fala e que fala ainda é esta.

Se ao apontar o dedo para estas indicações pode se devolver uma cobrança que também pode ser o do lugar da lamúria, quando não é, é dado, aponta-se também para o que se desfaz, como por exemplo a poesia de Ranieri Ribas, com um dos livros mais intensos dos anos 2000, “Os Caktos de Lakatus”, ou a poesia de Carlos Augusto Lima, num silêncio comprido e cumprido, da radicalidade de seu “Objetos” e de seu “Vinte e sete de janeiro”. Tanto que, uma marca imposta disso (ainda grosseiramente) é a insistência nos mesmos nomes, mesmos livros, mesma impertinência, tanto na crítica da resenharia empobrecida quanto no que se pode chamar de crítica acadêmica acerca da poesia do presente. Ricardo Aleixo, por exemplo, um poeta que se desloca entre o arejamento da poesia sempre como outra coisa e o que ela não é nunca, é lido e visto e revisto na mesma antologia de Heloísa Buarque de Hollanda citada acima como um “representante” (note-se o peso do termo) da poesia negra feita no Brasil a partir da década de 1990. A poesia passa a ter uma indicação de cor e lugar, no caso de Ricardo Aleixo ela é apontada por Heloísa como uma exceção, é mineira e é preta, e, ao mesmo tempo, é embotada com o traço de uma “marca identitária afirmativa e posicional”, assim também quando ela traça o que chama de poesia “gay” ou de uma outra “assumidamente judaica”.

E é o próprio Ricardo Aleixo, agora, ao publicar na coleção Elixir (num convite do designer gráfico Flávio Vignoli e com uma tiragem de 220 exemplares) o seu último livro, intitulado “Céu Inteiro”, quem aponta para um gesto que produz um desaparecimento desses lugares marcados, amém, e desses sintomas descompassados, coisa que sempre fez desde o seu “Trívio” até o seu “Máquina Zero” e, principalmente, no seu empenho político com o mundo para ampliar a distância, com a poesia, com as pessoas ao redor, que vai desde suas posturas – não abrir mão de tomar sentido e se posicionar, assumir a fala como um dizer e não como um escorrego nem muito menos como uma “articulação” ou uma “negociação”, como ainda sugere Heloísa Buarque – até, mais recente, com o seu LIRA (mais um destes espaços de afeto, lugares encantados, que este país produz sabe-se lá como, tal qual o Alpendre, em Fortaleza, o Torreão, em Porto Alegre etc). O LIRA, esticando o passo e a distância deste “Céu Inteiro”, no bonito bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte, perto da antiga esquina do Clube com suas canções sem tamanho, é um desdobramento de uma política de afetos.

“Céu Inteiro”, então, é um livro magro, curto e delicado, folhas soltas dentro de uma suposta pasta cinza, com uma letra bordô, uma ferrugem dobrada ao meio numa linha de elástico vermelho usada para fechar e abrir a caixa. É um livro-parte de um projeto maior que vai se chamar “Modelos Vivos”. O livro foi feito numa recuperação da tipografia, a poesia em tipografia (como o gesto de Cleber Teixeira e sua Noa Noa), cinco lipogramas como as novelas de Lope de Vega das quais retira de cada uma delas uma vogal. E assim faz Ricardo,a cada poema uma ausência de uma das vogais. No canto das páginas, elas aparecem, uma a uma, como uma numeração, como uma rememoração das vogais de Rimbaud, como um outro poema, um poema de canto de página, de salto para fora, de silêncio e tremor. E assim começa o movimento desta afecção: “Céu inteiro. Do centro dele, pende o / velho sol, o que viu surgir o primeiro // dos nossos, o último. Tudo de que me / recordo: um sítio onde o único rumor // que se ouve é o gorjeio monótono dos / grous. Noite de breu, de negrume, liso // de pele de bicho com, é possível, o / mundo inteiro sob seu peso feroz. Seus // duplos. O medo, como é: o vulto oblíquo / de um olho cego entrevisto por dentro.”

Ver por dentro, no vazio da placa de desvio, a caixa dentro da caixa como parte da queda, tudo passando aos saltos, num próximo segundo, sugestões de Ricardo Aleixo para a poesia, para ler a poesia como uma responsabilidade e não como quem pendura as mesmas fotografias nas mesmas paredes limpas, claras e fixas. A poesia, para Ricardo Aleixo, vem como desapropriação e com um céu inteiro para nadar.

2 comentários:

Gláucia Machado disse...

Eh, coisa boa!...

Anônimo disse...

Achei desnecessárias essas notas, até o momento em que as leio, aí, o céu que parecia finito, ganhou mais grandeza. "Eh, coisa boa!", arrepito. Waldemar Euzébio Pereira