Aos poucos, os compromissos que me ocuparam ao longo do ano vão se tornando lembranças boas, experiências únicas, riquezas para sempre. É o que de mais consistente consigo dizer, por ora, do que aconteceu aqui em Maceió, anteontem, ondequando apresentei, no Teatro Jofre Soares, a palestra-performance Desvios para a dispersão: Orfeu, John Cage, Exu. Vou precisar de algum tempo para processar tudo o que eu e meus convidados Marcelo Marques, Gláucia Machado, Tazio Zambi e Susana Souto, integrantes do grupo TEXTA, mais o bailarino Jorge Shultze, fizemos, digo, vivemos, como se apenas déssemos prosseguimento a práticas exaustivamente planejadas ou ensaiadas.
Gláucia circulou – cageanamente – pela platéia com um rádio ligado, sem se fixar numa estação específica, para incômodo de alguns que ainda cultivavam a ilusão de ouvir com clareza o texto da palestra, que li em diferentes andamentos, timbres, intensidades e volumes. Minha leitura se fazia entremeada a breves ações que desenvolvi com o poemanto e a improvisações no laptop e no piano preparado – sempre sob as lentes da máquina de Susana Souto, que fotografava do palco e, com sua pre/sença, ajudava a produzir a dispersão enunciada no título. Simultaneamente, Tazio, com um projetor no colo, lançava com (im)precisão suprematista as imagens de meu vídeo-em-progresso “No que pensam os pés quando longe da bola”: nas paredes laterais ou no teto, no cubo que demarcava o “grau zero” da performação de Jorge (este, um experimentado bailarino, capaz de proezas corpográficas que jamais se esgotam nelas mesmas) ou sobre a projeção, no fundo negro do palco, de um outro vídeo criado por mim.
Deixei para dizer por último, propositalmente, alguma palavra sobre Marcelo Marques, músico, poeta e autor de dissertação de mestrado – defendida na semana passada – sobre a tipografia na obra de Augusto de Campos. A energia criativa desse rapaz de 27 anos é algo raro de se ouver. O mesmo se diga da serenidade, do preciosismo e da altivez com que se entrega ao que faz. Tocando pequenos instrumentos de sopro, respondendo à minha gritaria “filodadaísta” ou improvisando no piano preparado – junto comigo ou sozinho –, tudo o que vinha dele era música em estado de poesia.
Na oficina que ministrei aqui, em dezembro do ano passado, eu já havia reparado em sua disponibilidade – corporal, inclusive – para o improviso, essa arte à parte tão complexa, mas agora, convivendo com ele no palco e nas sessões de gravação do CD do grupo TEXTA, constato que a conversa é bem mais séria: ou muito me engano ou, em breve, Maceió será pequena para tanto talento.
Hoje à noite Marcelo se apresentará no mesmo teatro com sua banda, a elogiada Gato Zarolho, e eu vou lá conferir. Tomara seus conterrâneos entendam que aqui, sob o azul-céu e mar desta cidade que viu nascer, há 111 anos, o poeta Edgard Braga, alguém se prepara para assumir, contra todos os obstáculos – dos quais a surdez do mercado é apenas a mais óbvia –, a grandeza de seu destino.
Um comentário:
Ricardo, saldações!
Há muito, exatamente nesta linhatura em Maceió eu havia lhe pedido o texto que você ecoou...
Entreguei-lhe o meu e-mail... mas, creio que por algum motivo isso não foi possível.
Então, eu gostaria de saber se isso ainda é possível? Estou trabalhando em uma discussão sobre corpografia e a cidade polifônica, e lembro-me que a discussão sobre o corporal fazia parte da trama. Como você havia dito: "o corpo não é mais casa do ser...".
Meu e-mail é: morenobaeta@gmail.com
Abraços, Ricardo!
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