23.3.10

E agora, passemos ao que realmente importa


"A conversão dos textos de poesia em composições musicais, melodizadas ou sob tratamento sonoro, é sempre um desafio, qualquer que seja a estratégia que venha a ser escolhida, seja ela a linguagem transtonal da música contemporânea, ou a dominantemente tonal da música popular ocidental. Num artigo para a Folha de S.Paulo, em 10 de outubro de 2004, eu comparava algumas modalidades diversas de abordagem dos textos tipográficos mais experimentais do poeta E.E. Cummings – as dos compositores modernos Cage, Feldman, Berio e Boulez, todas elas realizações significativas. As mais antigas, dos anos 1940, de John Cage, adotaram uma fórmula minimal da linha melódica: duas a cinco notas em tessituras curtíssimas e escala pentatônica, que as aproximam da fala. É o caso de “Forever and Sunsmell”, de Cummings e de “The Wonderful Widow of Eighteen Springs”, do Finnegans Wake, de James Joyce. Já Feldman , ao musicar quatro dos mais arrojados poemas de Cummings como “air” e “black!”, adotou melodias webernianas e pontilhistas, com grandes saltos intervalares, para pontuar fonicamente os estilhaçamentos da linguagem visual de Cummings, o que torna o entendimento do poema menos viável, apesar da beleza e do isomorfismo da linguagem musical. Pierre Boulez, optando pelo poema “birds) inventing air” na composicão “Cummings ist der Dichter” (Cummings é o poeta), um dos textos mais radicais e espaciais de Cummings, parece não se importar com o fato de que as aéreas massas corais que utiliza bloqueiem o entendimento do poema. Isso está de acordo com o pensamento que manifesta no estudo “Som e verbo”, segundo o qual não estaria interessado em disputar com a musicalidade intrínseca dos textos, antes os tomaria como propulsores de ideias estruturais para a sua música. Ele parece pressupor que o ouvinte deva conhecer o texto ou tê-lo à mão ao ouvir a música. Mesmo assim, o poema é dificilmente compreensível, o que não nos impede de usufruir da beleza da composição, enquanto música. Diferentemente dos outros, Luciano Berio, em “Circles”, dá aos poemas de Cummings a dimensão maior de uma cantata. Sem perder de vista a clareza da enunciação vocabular e seu entendimento, explora ao máximo as virtualidades fonêmicas sugeridas pela fragmentação vocabular, a ponto de incluir as pontuações não ortodoxas e até mesmo os parênteses na transposição sonora. Numerosos instrumentos de percussão respondem gestualmente às provocações do texto, articulando e desarticulando o discurso musical em fase com o discurso verbal." [Fragmento do texto escrito por Augusto de Campos para o folder de Poemúsica, que o poeta definiu como "fala-show, show-fala ou showversa entreouvista"]

Um comentário:

Luiz Carlos Garrocho disse...

Muito bom. E inspirador. Daí, um caminho. Melhor, vários...

Abraços