19.1.08

Oitenta anos de Affonso Ávila

Sábado, 19 de janeiro de 2008


Jornal Estado de Minas
caderno PENSAR

Repetir sem se repetir

O poeta, crítico literário e pesquisador do barroco Affonso Ávila completa 80 anos como exemplo de inquietação criativa e rigor intelectual para escritores e ensaístas de Minas




Ricardo Aleixo


A literatura brasileira conta, em 2008, com dois acontecimentos que exigem rememoração à altura: os 80 anos de vida do poeta, estudioso do barroco e crítico literário Affonso Ávila e os 70 do poeta, prosador, artista gráfico e editor Sebastião Nunes, a se completarem, respectivamente, neste 19 de janeiro e no ainda distante 5 de dezembro. Num e noutro caso, a exigência a que me referi na primeira frase se origina na constatação de que ambos, na maturidade, se mantêm em plena forma criativa, com trabalhos recentes em nada devedores de sua realizações de outras épocas.

Aviso que não farei, aqui, uma análise comparativa das obras de Ávila e Nunes, por entender que demandam um estudo de mais largo fôlego, dada a especificidade do modo como cada uma oferece respostas (e “reperguntas”) a problemas da arte verbal na contemporaneidade. Se aproximei esses dois raros criadores, foi com o propósito de frisar, além da coincidência das datas redondas, uma história de amizade e parceria artística que, firmada nos anos 60, perdura com força bastante para inspirar a Affonso, em seu livro mais novo, Cantigas do falso Alfonso el Sabio, o poema “Cantiga a São Sebastião da Bocaiúva”, de que reproduzo a esplêndida abertura: “Nasceu e estudou direito/ mas quebrou o anel pois pleito/ não era a desse sujeito/ perderia causa e efeito/ na verdade seu conceito/ no nome trazia feito/ mártir seria em preceito/ de reverter preconceito/ soltou-se do tronco de eito/ tirou as setas do peito (...)”. E mais não digo, por ora, a respeito dessa relação dialógica de tão grande importância para a desprovincianização do ambiente cultural mineiro.

Neste breve “exercício de admiração”, concentro-me na tarefa de saudar o aniversariante do dia, Affonso Ávila, exemplo de inquietação criativa, rigor analítico e autonomia intelectual para todas as gerações de poetas, escritores e ensaístas que surgiram em Minas nas últimas cinco décadas. Affonso foi quem, posicionando-se contra o secular conservadorismo mineiro, cantou a pedra da invenção entre nós, num momento de redefinição da cultura e da política do país – o período que vai do intervalo democrático representado pelo governo de Juscelino Kubitischek, de 1956 a 1961, à eclosão do golpe militar em 1964. Indissociável de sua criação poética, a atuação pública de Ávila como editor, crítico literário e organizador de eventos culturais – baste a lembrança da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em agosto de 1963 – deve ser entendida no âmbito do que Jacques Rancière definiu, no livro Políticas da escrita (Editora 34, 1995), como “a partilha do sensível”, gesto que, no dizer do filósofo francês, “dá forma à comunidade”, por implicar “a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões”.

Experimentalismo

E é sobre isso que quero conversar aqui. Sobre como Affonso, ao mesmo tempo que se empenhava no estabelecimento e na ampliação de espaços para a criação, a pesquisa e o debate estético-cultural, veio grafando uma poesia – seu “quinhão” poético – de sempre altíssima voltagem, que conforma um dos mais radicais projetos textuais da poesia escrita em língua portuguesa da segunda quadra do século em diante. Quero, acima de tudo, comentar, na obra do experimentalista mineiro, o uso de um recurso estilístico que permeia diferentes fases de seu trabalho criativo: a repetição.

Na obra do autor dos “Trilemas da mineiridade” (“eu em modorra de minas/ eu em montanha de minas/ eu em montagem de minas” etc.), a repetição associa-se a outros procedimentos técnico-formais manipulados pelo poeta com igual perícia, tais como a exploração topológica da página, da fragmentação vocabular e de complexas cadeias paronomásicas e aliterativas, os paralelismos imagético-sonoros, a paródia e a auto-ironia, sem esquecer, naturalmente, a meditada escolha dos temas (que são, por seu turno, tensionados isomorficamente até o limite, como na série reunida no livro Cantaria barroca, de 1975, de que faz parte o impressionante "Casa da Ópera" – impossível reproduzir sem prejuízo da “arquitextura” que recupera iconicamente a disposição espacial do mais antigo teatro das Américas, com referências a atrizes que ali atuaram desde sua fundação, em 1770, até a década de 1970).

Comumente associada à redundância, a repetição, conforme praticada por Affonso Ávila, transforma-se em um princípio estruturante, com o qual se engendram novas camadas de sentido. Tal como em Gertrude Stein (“a rose is a rose is a rose is a rose”, frase-emblema, aliás, glosada por Affonso em um dos mais bem realizados poemas do “politicamente incorreto” Masturbações, de 1981), que diz: “Rosa/ melhor uma p/ rosa/ melhor ainda uma p/ rova/ p/ rovar gertrude stein e espor/ rar uma/ rosa”. Como, também, em João Gilberto, “designer [sonoro] da linguagem”, de acordo com a precisa definição do poeta pós-Mallarmé feita por Décio Pignatari, que altero levemente com a inclusão, entre colchetes, da referência ao mundo dos sons. Como, por fim, mas não por último, no candomblé, onde e quando os padrões rítmicos agenciam o corpo para a dança e, se os deuses forem propícios, para o transe (ver/ler/entoar, a propósito, a “Cantiga da beata Menininha do Gantois”, de Cantigas do falso Alfonso el Sabio, na qual se contam nada menos que 40 evocações do nome do orixá maior, ao final de cada verso – de “veio de longe oxalá” até a penúltima linha, “beata em deus oxalá” –, até o final, entre previsível e surpreendente, ou surpreendente porque previsível: “menininha do gantois”).

Mapa do sensível

“Nenhuma repetição é igual a outra – é sempre antes ou depois, numa seqüência de repetições”, escreveu em algum lugar a coreógrafa estadunidense Lucinda Childs. Para ela, “as idéias sugeridas no início se dissipam e descobertas mais profundas passam a instigar a mente”. Essas palavras se ajustam com perfeição a este aspecto do trabalho de Ávila que ponho em destaque. Ainda que calcada na realidade imediata, a poesia dele se organiza tendo em vista, para citar outra vez Rancière, a reconfiguração do “mapa do sensível”. Em outros termos: para além da mera transmissão de significados, o poeta opera na faixa da desautomatização da leitura. Nos momentos mais densos dessa poesia, os vocábulos como que espalham seus formantes ao longo dos textos – como em certas peças sonoras compostas por mínimas filigranas timbrísticas e/ou rítmicas que geram novos objetos sem que a estrutura de base se desmonte –, numa espécie de desvio do escrito legitimada, entretanto, pelo caráter partitural dos textos (lembremo-nos, a propósito, de uma observação de Jacques Lacan, citada por Haroldo de Campos em seu A operação do texto: “Bastaria escutar a poesia, o que talvez Saussurre não tivesse o hábito de fazer, para ouvir como emerge uma verdadeira polifonia, para saber que de fato todo discurso alinha-se nas várias pautas de uma partitura”).

Um tanto esquematicamente, proponho, já finalizando estes rápidos comentários, uma tipologia do uso da repetição por Affonso Ávila, que poderá ser de alguma utilidade a quem deseje se aprofundar no assunto: 1) variações sobre o mesmo tema, como na série Discurso da difamação do poeta, publicada pela Summus Editorial em 1978: o poeta parte da supressão de vocábulos para a instauração de frases conclusivas, em caixa-alta, a modo de “moral da história”; 2) a descontinuidade frásica de poemas nos quais o motivo principal é preservado, não obstante os vocábulos sofrerem toda sorte de modificações (ver os poemas de O Belo e o Velho); 3) o uso de rimas com, quase todas, a mesma terminação: já utilizado em poemas de outras fases, esse procedimento reaparece nos versos de circunstância de Cantigas do falso Alfonso El Sabio, de que já citei dois fragmentos.

E aí está. Haveria, evidentemente, muito mais pontos a serem ressaltados na vasta obra desse poeta a todos os títulos imprescindível, mas não foi a isso que me propus com este escrito. Quis foi chamar a atenção do escasso público leitor de poesia (em especial, a dos jovens poetas, que, inexplicavelmente, lêem cada vez menos poesia) para o paradoxo de um artista da palavra que se mostra capaz da proeza de fazer os mais diferentes usos da repetição sem jamais se repetir. Por ter, entre outros feitos, se disposto a ensinar a quem soube ouvir que “a lição é criar o próprio estilo” e “o próprio espaço”, Affonso Ávila é merecedor de todos os vivas, neste dia em que chega à casa de número 80 de uma vida inteira nucleada e iluminada pela poesia. Saravá, Affonso Ávila!

[Ricardo Aleixo é poeta, músico, artista visual e professor de design sonoro na Fumec. Publicou, entre outros, os livros Trívio e Máquina Zero]

3 comentários:

Cândido Rolim disse...

Justa a homenagem, Ricardo.
abraço
Cândido.

Anônimo disse...

Belo texto, Ricardo, parabéns. Abraço do

Claudio Daniel

Anônimo disse...

ola ricardo, gostaria que vc falasse u pouco sobre sua poesia rondo da roda noturna. é uma poesia experimentada?
nadja.