27.2.11

Pedra-90!

O saudoso Henfil vivia dizendo que “quem tem mãe não tem medo”, lembram? Adoro o dito, repito-o sempre que me dá na veneta, mas quero registrar o quanto um pai dos bons também é “pedra 90”, como dizia a gente da antiga. O que dizer, então, de um pai que chega, lúcido e cheio de bossa, aos 90 anos? Quer riqueza maior do que essa? Pois eu tenho um pai assim. Américo Basílio de Britto, novalimense e vilanovense da safra de 1911, é, desde ontem, um nonagenário. Daqueles de cabeça branquinha, passo arrastado, riso aberto, “macacoas” por todo o corpo, pressão alta, voz abaritonada e conversa sem pressa.

Meu pai não existe. Mas todo mundo gosta dele. Na infância eu achava estranho ser filho de um sujeito tão velho – eu nasci no afortunadíssimo ano de 1960, em plena euforia desenvolvimentista. Não tendo conhecido nenhum dos nossos avós, minha irmã, Fátima, e eu nos sentíamos netos de nossos pais (nossa mãe, Íris, personagem frequente desta coluna, conta sete anos menos que Américo).

Meu pai não existe, eu dizia. Talvez por esse motivo levei tanto tempo para compreendê-lo. Tive que inventá-lo – sabe lá o que é isso? O diacho é que eu não tinha modelos à mão. Homens, em geral, são muito chatos, pouco imaginativos, duros, difíceis, refratários ao movimento e à mudança. Meu pai também é assim, em muitos aspectos. A diferença, em favor de Américo, é que ele sempre abrigou, no corpo e no espírito, certas contradições que punham e põem seu mais que aparente machismo entre aspas.

Quer um exemplo? Na divisão das tarefas domésticas, nunca se ouviu, em nossa casa, qualquer menção a “serviço de homem” ou “de mulher”. Era ele quem, entre outros afazeres, nos fazia dormir, invariavelmente por volta das sete da noite: com uma criança em cada perna, meu pai lia qualquer bobagem em espanhol, ou cantava em inglês passável músicas do repertório de seu querido Sinatra, ou, ainda, contava fatos engraçados ou tristes de sua infância. Como a vinda para Belo Horizonte, em 1924, para fazer pequenos serviços “numa casa de família”, em troca de comida, roupas e estudo: até hoje me enternece a imagem dele, meninote de 13 anos, se despedindo da mãe, que morreria naquele mesmo ano – sem sequer supor que sua morte desobrigaria seus “amigos” de propiciar a Américo o terceiro dos itens constantes do acordo.

Se ele teve outras chances de estudar? Que nada! Só deu para completar o primário, já com 17 anos, e olhe lá. Mas foi o bastante para que ele se tornasse um cinéfilo tão respeitável que, lá pelos 30 anos, para controlar o vício”, chegaria a fazer promessas a sei lá qual santo para se ver longe das salas de cinema. Leu muito, também, sobretudo romances. Já com mais de 60, começou a escrever poemas e histórias para crianças – que ele mesmo datilografa, manda copiar em xerox e distribui para os vizinhos e amigos, em ocasiões como Natal, Dia das Mães e outras datas festivas.

Meu pai não existe. Razão pela qual chegou aos 90. Afinal, o que o homem sofreu vida afora não dá para resumir em 40 linhas. Nem as coisas que o alegraram e alegram caberiam em tão pouco espaço. Quando o olho, como agora há pouco, penso – mesmo sabendo-o “católico apostólico romano” – no quanto ele lembra Oxalá, o orixá da paz. O bastante para eu reconhecer que um mundo onde nasceu uma criatura assim tão bonita não pode ser tão ruim como por vezes me parece. [Crônica publicada originalmente no caderno Magazine do jornal O Tempo, no dia 28/02/2001. Reproduzo-a hoje para saudar os 100 anos da chegada ao mundo desse sujeito homem que completou, bem aqui, perto de mim, os últimos anos de sua formação para ancestre. Américo viajou no azul de sua Grande Hora em setembro de 2008, mas a saudade não passa. Nem a alegria pelo breve tempo que compartilhamos neste mundo].

14 comentários:

.thiago.cervan. disse...

Que lindo isso. Em Atibaia há um grupo de samba chamado "Pedra 90", formado por sábios senhores de cabeça branca.

Simone Couto disse...

querido,

vc acaba de empoçar meus olhos.

Bjs de Marseille,
Simone

Victor da Rosa disse...

pelo q eu vejo, você também passa dos 90, ricardo. no alto dos 50, ainda parece um menino. quanto tempo, grande abraço, victor

Ricardo Aleixo disse...

".", bacana os "Pedra 90". Simone, querida, ome 1 beijo. Victor, caro, a ideia é ficar por aqui enquanto a vida tiver graça - no sentido mais elevado da palavra. Grande abraço!

Benjamin Abras disse...

Sim, Ric,Graça que se faça nem que seja na raça. Quem tem pai tem peito.

Paulodaluzmoreira disse...

Lindo texto, Ricardo. E lindo este pedacinho da história do seu pai. Não sabia que vc era tão bom de prosa quanto é de poesia!

HIBISCUS FLORENCIS disse...

Caro Ricardo Aleixo, quanto menos te vejo mais te admiro; quanto mais te leio mais te escuto.
è isso aí, sei também o que é ter um pai nonagenário.
bjs negros.
Detalhe: "Sêo Américo" uma verdadeira jóia rara, então.

Ricardo Aleixo disse...

É isso, Benja. Salve! Pois é, Paulo: proseei por um longo período no jornal O Tempo, onde assinava uma coluna semanal. Bom que gostou. Abraço! Ei, Rita! Maravilha saber do seu pai! Tome aí um beijo!

waldemar euzébio pereira disse...

Ricardo, acho que pai tem natureza de mito: se você o tem, inventa-o; se não o tem, cria-o. Agradeço-o por ter me convidado para uma dessas construções, ontem. Waldemas.

Ricardo Aleixo disse...

Waldemas, caríssimo, gracias por sua sempre presença! Abraço enorme!

Beatriz Magalhães disse...

Ricardo,
vi o Américo duas vezes, uma vez vivo, outra vivo para sempre.
E o revejo em você a cada encontro. Soprei as velinhas dos 100 e outras mais quero merecer soprar. Lindo seu amor por ele. Beatriz

fulinaíma produções disse...

por aqui nem só beleza
nesses dias de paupéria
nação de tanta beleza
país de tanta miséria

http://goytacity.blogspot.com/2011/03/o-racha-no-ministerio-da-cultura.html

ventilador – jiddu saldanha – cinema possível
http://www.youtube.com/watch?v=SVpwfLpwp00

João Rasteiro disse...

Abraço, Ricardo, me emocionei, pois meu pai, também partiu nesse azul do céu, em 1997, quanto faltavam 34 dias para fazer 90 anos. Para seu Américo, um grande saravá, mas especialmente para seu Manuel Rasteiro, um singelo beijo em seu rosto.

Ricardo Aleixo disse...

João, meu amigo, bom vê-lo por aqui. Aguarde, para muito breve, o livro que lhe prometi. E tome aí um abraço grande!