22.8.08

55 começos


Vida/arte adentro: um roteiro de errâncias


Escolho, como ambiência sonora para a escrita deste "exercício de admiração", algo tão estranho como o modo único com que Manoel Ricardo de Lima estranha os textos que leu, na condição de crítico cultural do segundo caderno do jornal O Povo, de Fortaleza, entre 1997 e 2007: as granulações entre toscas e sofisticadas da música de timbres (com direito a salivações e silêncios preparados) produzida com virtuosismo pela trumpetista e compositora berlinense Birgit Ulher – que, para não perturbar o sono das pessoas da casa, ouço nos fones, devido à hora já avançada da noite. Preciso confessar que faço-me acompanhar do som raro e difícil de Birgit para não quedar embruxado pela prosa marota de Manoel, que sabe como poucos chamar às falas a inteligência e a sensibilidade de quem o lê em suas deambulações críticas por obras alheias. 

Admito também que, se convoco (convido) uma artista de outro contexto artístico e cultural para o que deveria ser, de início, uma conversa só com o piauiense-radicado-por-muitos-anos-em-Fortaleza-e-atualmente-instalado-em-Florianópolis, faço-o com o propósito deliberado de apontar o quanto o olhar desse poeta-pensador pouco ou quase nada tem a ver com as demarcações fronteiriças que, ainda hoje, servem de baliza à recepção da poesia feita no Brasil. Não que Manoel busque se situar em algum "não-lugar" entre o mundanismo literário e a academia, com o Olimpo de permeio, como fazem tantos literatos brasileiros, nada disso. A questão que ele traz diz respeito justo ao enfrentamento do lugar como problema central para o poeta contemporâneo. Daí sua propensão para estranhar os textos que lê (da mesma forma, posso dizer, como Birgit Ulher estranha o trumpete, fazendo com que o instrumento soe como um outro – sem todavia deixar de ser o que é), transformando-os em lugares desafiadoramente abertos a sucessivas explorações do olhar leitor. Daí, também – e essa é, creio, a contribuição mais significativa da atuação crítica de Manoel Ricardo até o presente –, sua declarada disposição de ler os textos que escolhe como coisas vivas, nossas contemporâneas, isto é, como problemas.

Não é à toa que o volume se abre com o elogio da atividade crítico-ensaística de Mário Faustino (1930-1962). Importa, para Manoel, frisar não a circunstância de serem ambos naturais do Piauí (ele, de Parnaíba; Faustino, como Torquato Neto, da capital do Estado, Teresina), como ocorreria a alguém de temperamento menos inquieto, mas a pertinência do projeto de vida e arte que norteou o brevíssimo estar no mundo do grande poeta-crítico. O tocante final do artigo mostra, sem subterfúgios, o quanto Manoel Ricardo toma o exemplo vivo de Mário Faustino como parâmetro ético para sua própria atividade crítica: "Escrever literatura, e sobre ela, como Mário fez é pautar lacuna serena e problematizar a cultura. Hoje, enquanto o país se arrasta por causa do enfado de alguns vários que teimam em inviabilizá-lo, ainda a falta de educação e de respeito, e que nos fazem perder uma oportunidade única de acreditar em alguém que tem boa alma, pela primeira vez, há ainda o que se produz de muito interessante em poesia, arte e pensamento. É pouco, talvez, mas se produz. O nó é quem não faz nada, e só aponta o dedo sem dizer como. Espalhar o acesso agora ao pensamento de Mário, organizado como sempre foi, em livro, é dar a mão a bater palmas: é deixar ver quem aponta o nó e tenta desatá-lo."

E porque "o nó é quem não faz nada, e só aponta o dedo sem dizer como", Manoel empenha-se em ler a circunstância-mundo como um "lugar" que o torna, em perspectiva sincrônica, conterrâneo e contemporâneo de Mário Faustino, ao mesmo tempo que lhe fornece os argumentos necessários para errar – nos dois sentidos da palavra – por conta própria. É todo um programa de "vida conversável" (lembro, aqui, o belo título de uma coletânea de escritos do filósofo português Agostinho da Silva), portanto, o que se descortina diante dos nossos olhos quando folheamos este livro sobre livros. Livros sobre livros que são, por sua vez, sobre outras infinitas conversas-livros. O poeta-leitor-crítico não nos ensina como ler tais livros, pelo contrário: estranhando-os, lendo-os no sentido bordas/centro, descobrindo e dando a ver em seus supostos centros as bordas de prováveis novos centros, Manoel só faz despertar em nós, seus leitores-interlocutores, o desejo de nos embrenharmos junto com ele livros adentro (sem esquecer as artes visuais, estranhadas em uma série de 5 textos também incluídos no volume).

Em meio ao ranço de doença que impregna o ar do mundo, Manoel Ricardo ousa puxar conversa sobre a saúde e o imperativo que é gozá-la o mais intensamente possível. E não é só: Manoel é da quase totalmente extinta raça dos que sabem que fomos providos de dois ouvidos e uma só boca para ouvirmos o dobro do que falamos. Que saibamos fazer chegar esses fios de "fala inacabada" (para lembrar, desta feita, o lindo livro que ele fez, como poeta, em parceria com a artista plástica Elida Tessler) aos debates acadêmicos, às salas de aula, às rodas literárias e a todo canto, enfim, onde a poesia e a literatura ainda façam algum sentido. Quando, como agora, iniciativas governamentais de "incentivo à leitura" são forjadas nos gabinetes sem que as vozes dos escritores consigam estabelecer pelo menos um contraponto audível aos tenebrosos dós-de-peito do mercado editorial, é fundamental que busquemos recuperar a dimensão estritamente cultural (porque vinculada à vida da coletividade, e não ao tilintar opressivo das moedas) da poesia e da literatura. E isso tem de sobra nesta intensa, comovente e essencial coleção de artigos com que Manoel Ricardo de Lima nos dá o que pensar. 

                                                                                     Ricardo Aleixo

                                                                                    Prefácio do livro 55 começos,
                                                                                    de Manoel Ricardo de Lima 
                                                                                    (Editora da Casa, 2008)

4 comentários:

Gláucia Machado disse...

essa experiência de leitura de poesia evoca uma palavra, lindo!

Anônimo disse...

belo texto, ricardo! fiquei curiosíssimo pra ler o livro. abrações

helena disse...

ricardo,
teu texto estranhou perfeitamente o que continua no livro do manoel. adorei!
abraços
helena
TB-SC

Cândido Rolim disse...

Massa, grande Ricardo! ótimo diálogo.
abraço
Cândido.