Alguém já disse, a respeito do lugar instável ocupado pelos artistas no mundo do trabalho, em países, como o Brasil, que tal situação refletiria um ponto de vista machista, o qual identifica a arte como “coisa de maricas”. Simples assim. Quem já preencheu um único formulário de alguma lei de incentivo sabe bem do que estou falando. O artista, para obter a espiga de milho (de milhões, para uns poucos) que lhe permita desenvolver o seu trabalho, justifica o injustificável, faz promessas impossíveis de cumprir, prova por a + b q sua arte é “útil” e “necessária”, conta e reconta centavos. Tudo para mostrar que sua ocupação é séria, porquanto desenvolvida nos moldes do que dele esperam o governo, os diretores de marketing, a mídia, as criancinhas pobres e todos os excluídos deste mundo grande sem porteira.
Também já foi vítima do machismo anti-artistas quem por acaso passou pela situação por que passo agora: dias depois de encerrado o Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana, onde ministrei uma oficina, recebi email da coordenação do evento com uma pletora de documentos que eu deveria enviar para confecção do contrato. Não bastasse a solicitação dos documentos ter sido feita quando eu já me encontrava às voltas com outras atividades, o contrato continha uma série de pontos que eu gostaria de discutir, mas que, para receber logo e dar por encerrado o assunto, julguei mais pertinente ignorar. Santa ignorância, Batman! Descobri, dias atrás, que a verba da qual sairá o meu pagamento foi depositada na conta do Festival, mas ainda não pode ser movimentada, por se tratar de recurso advindo de lei de incentivo.
O problema é que ninguém me avisou que eu teria que trabalhar nessas condições: “fazendo fiado” para uma instituição pública. Parte-se da premissa de que artistas, seres “sensíveis”, “iluminados”, não devem ser incomodados com questões burocráticas – ou porque não se importam mesmo com elas, ou porque não teriam condições de compreender os meandros e meonardos da vida (burocrática) como ela é. Fui lesado, e é por isso que resolvi tornar público o problema. Escrevo para o setor financeiro do Festival e tudo o que fazem é me pedir “um pouco mais de compreensão”. Não compreendo, já que não gosto de ser tratado como moleque. Minha família, meus credores e meu desejo de viver dignamente também não compreendem. Meu advogado me disse para tentar compreender pelo menos até a próxima terça-feira, dia 20. Disse a ele que vou tentar. [A imagem acima é um hit da arte experimental brasileira: Zero cruzeiro, de Cildo Meireles].
12 comentários:
parecem pensar que um artista tem também uma vida artificial, sem as necessidades básicas para uma sobrevivência digna. parecem achar que so com a 'divulgação' dos trabalhos artísticos ja estão pagando o suficiente.
Ricardo, o processo todo do Festival parece ter sido anti-profissional no sentido em que você coloca, e há uma ignorância do valor do trabalho alheio, da seriedade do artista, etc etc. Mas nem em todos os lugares é assim. Mas é revoltante ter trabalhado e não ter recebido por isso logo em seguida. Toda a documentação deveria ter sido enviada antes da sua participação, claro. Mas espere e "compreenda" até terça-feira. Isso vai ser resolvido. É a burrocracia das verbas públicas que empata e desrespeita o cidadão. Máquina morosa e sem o menor apreço pelo outro.
BJs.
Concordo totalmente com relação ao machismo anti-artista. É curioso às vezes ler/estudar sobre um suposto logocentrismo machista europeu em que tudo que é feminino é considerado menos racional e mais corporal, enquanto somente os homens habitariam as iluminadas esferas da vida intelectual. Vejo esse paradigma totalmente invertido aqui no sul do mundo. Quanto mais pensante se é, mais feminino você é considerado. Os machos de verdade são seres corporais.
Ricardo, tamo junto. Ô vidinha difícil!
Essa prática se espalhou, não é privilégio dos festivais e instituiçòes públicas, embora delas devesse partir o exemplo.
A tempo: posso protelar meu pagamento de impostos porque as instituições pra quem devo não me pagaram?
Em vários momentos, a prática é realizada por artistas que se tornaram produtores. Um exemplo na outra direçào, da Malu Aires, que se recusou a fazer um festival com verba que sairia depois do festival. Pela quinta vez, faz sem a verba e a lei.
Precisamos ter postura profissional e cobrar contratos de quem nos cobra papelada. Cadê o contrato? Onde eu assino falando que vou receber, e com juros, se atrasar?
A indignação é completamente compartilhada, Ric.
Os órgãos públicos, em especial, são muito ágeis na hora de cobrar e lentos na hora de pagar. Para os artistas, Rique, você observou bem: há uma visão especial para nós, ao ponto de ter se tornado normal dizerem: "nós estamos divulgando seu trabalho. você ainda quer receber?"
Gente,
Rique,
fico assim sem saber o que dizer... e chego aqui meio tardiamente, porque fiquei pensando no assunto... Provavelmente, todos nós já passamos por esse tipo de situação. Isso nos aborrece...E a gente se sente super impotente. Mas tô pensando aqui que não gostaria de refletir este assunto a partir do ponto de vista da vitimização que, confesso, já me pegou várias vezes. E não estou, com isso, dizendo que vcs o estão fazendo. É apenas um caminho que proponho para minha reflexão diante dessa história que tanto se repete e se repete e diante da qual me sinto sempre tão desrespeitada. Se a gente pensar que isso é um jogo, acho que ficaria interessante se pudéssemos imaginar que também podemos organizar as regras. Também fazemos parte do jogo e não necessariamente precisamos ser peças perdedoras. Como alguns aqui já disseram, penso também sobre o seguinte: de forma curiosa, somos vítima, sim, de um glamour criado em torno do artista, né? Somos quase deus... Isso é muito louco. Trabalhamos com o sensível. E o sensível/o deus, para o raso de nossa cultura, é antagônico ao dinheiro, ao material..., porque dinheiro é coisa dos não artistas, dos não sensíveis... Só que, ao contrário, não seria o dinheiro, parte do sensível, já que, em todo o seu processo de “materialização”, o dinheiro teve ali por trás um algo criativo que inventou algo a ser vendido, negociado? Afinal, o que é o dinheiro, se não uma forma criativa de energia pela qual se troca algo material ou mesmo imaterial como música e poemas? O sensível não deve ser uma negação do “real”, como a sociedade tende a julgar... Como se um não fizesse parte do outro... E acho que cabe, a nós, em consciência e propósito, demonstrar, primeiro, para nós mesmos, que o jogo inclui as duas vias. O sensível e o real. Como cérebro e coração... Tudo é apenas troca de energia. E que o dinheiro, o cachê, nos torna felizes e completos em nossa caminhada. A troca é justa, como jamais poderia deixar de ser. Penso também no cidadão, não artista, assalariado, que tem o imposto de renda descontado em folha (já fui um destes), impotente diante das regras ditadas pelo governo que nós elegemos e do qual tão pouco participamos. Não estamos sós e o desafio é de todos. Bom, a única saída é a reflexão. Seguida da atitude, dentro daquilo que nos pertence, dentro do campo que nos cabe atuar. Um desafio e tanto, mas um desafio bom e possível...
Ricardo, contra a chantagem da compreensão, solte os cachorros. Como bem lembraram aqui, deva ao fisco e verás quão céleres são seus cavalos batisados.
Cândido e todos os que comentaram antes: quero, há dias, retomar o debate, com base no número grande de pessoas que apresentaram (também por email) contribuições pertinentes à questão que coloquei - a qual, como a maioria compreendeu, vai além do (meu) problema com a Ufop. Até breve!
passadas aventuras e já 13 dias depois da data limite para a compreensão, afinal te pagaram?
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