Os livros-objetos Poemóbiles
(1968-1974) e Caixa preta (1975) são, para dizer o mínimo, dois pontos elevados, tão luminosos quanto complexos,
da ainda pouco estudada relação estabelecida, no Brasil, pelo menos da década
de 1950 em diante, entre a poesia e o design. Destinam-se, tais obras, àquele
raro tipo de leitor/a que, mais do que receber, já pronta, uma determinada
“informação textual”, aceita o desafio de tornar-se conviva de uma festa
intersígnica na qual o sentido, para se materializar, precisa ser elaborado
passo a passo, isto é, olhar a olhar, toque a toque, timbre a timbre, ritmo a
ritmo, dobra a dobra, vozeio a vozeio, palavra a palavra, letra-imagem a
letra-imagem, silêncio a silêncio.
Poemóbiles
e Caixa preta são obras complexas,
como dito linhas atrás, porque, entre outros motivos, tensionam os limites do
trabalho em cooperação entre designers e poetas. Não há, a partir da
contemplação de tais peças, lugar para “opiniões” taxativas acerca das caducas
oposições dicotômicas entre arte e técnica (e, consequentemente, sobre o papel
“específico” de cada um – poeta e designer – na formulação e no desenvolvimento
do projeto) porque Augusto de Campos (1931) e Julio Plaza (1938-2003) são
artistas que se movem naquele espaço (inter)sígnico de liberdade que faz do
poeta um “designer de linguagem”, conforme a conhecida premissa do
poeta-crítico Décio Pignatari.
Numa
rápida tentativa de leitura, pode-se definir Poemóbiles como um conjunto de objetos tridimensionais, de forma e
dimensões regulares, que, abertos, em “perspectiva pop-up” (Ana Paula Mathias de Paiva, in A aventura do livro experimental no Brasil – Autêntica/Edusp,
2010), fazem saltar da dupla lâmina – à semelhança de uma página aberta – vocábulos
grafados, nas três cores primárias, sobre estruturas entre “geométricas e
orgânicas”. Impressiona nessa série o fato de ela resultar de uma intrincada
urdidura gráfico-visual que propicia, surpreendentemente, uma ludicidade que
confere à obra inquestionável dimensão performativa.
Trata-se,
em precaríssima suma, de um livro que: 1) põe em questão a noção predominante
de livro; 2) avança na direção aberta pela poesia concreta quanto à
possibilidade de uma ars poetica não
limitada ao primado do verso; 3) concilia de modo indissociável a visão e o
tato do/a leitor/a, que é, assim, retirado da costumeira passividade diante da
palavra escrita a que séculos de predomínio do logocentrismo nos reduziram; 4)
recupera e radicaliza a noção poundiana da “crítica via criação”, posto que o
projeto Poemóbiles teve início quando
Augusto, convidado por Plaza a escrever uma introdução crítica para o livro Objetos, respondeu com um poema que integra-se à infra-estrutura da
obra que deveria analisar.
A Caixa preta, por seu turno, segundo o
poeta e ensaísta Antonio Risério (Ensaio
sobre o texto poético em contexto digital – Fundação Casa de Jorge
Amado/Copene, 1998), que “descende em linha direta das caixas de Marcel
Duchamp, a Caixa verde (1934), e a Caixa valise (1938-1941)”, tem título
que “foi capturado no terreno da cibernética (“Problema da caixa preta”). Só
por aí já se vê o empenho do poeta-designer e do designer-poeta em expandir
ainda mais os horizontes de seu projeto cooperativo – do qual toma parte,
também, o poeta-cantor Caetano Veloso, que grava, para o pequeno disco que
acompanha o volume, uma vocalização nua e crua, tão weberniana quanto
lupicínica, do poema dias dias dias,
dedicado por Augusto à sua musa, Lygia.
Dada
a exiguidade do espaço disponível para este, mais que texto de apresentação,
bilhete de embarque, ficam os votos de uma excelente viagem para quem se
dispuser a embarcar nestes dois imprescindíveis exemplos de inventividade
poética legados por dois dos nomes mais representativos da arte do século XX.
Ricardo Aleixo
(poeta, artista
visual/sonoro
e pesquisador de poéticas
intermídia)
Texto escrito especialmente para a mostra
O papel do poeta, em cartaz na
Galeria de Convergência
do Museu de Arte Murilo Mendes,
em Juiz de Fora (de 18/12/2014 a 16/03/2015),
com curadoria de Afonso Rodrigues.
Texto escrito especialmente para a mostra
O papel do poeta, em cartaz na
Galeria de Convergência
do Museu de Arte Murilo Mendes,
em Juiz de Fora (de 18/12/2014 a 16/03/2015),
com curadoria de Afonso Rodrigues.