28.1.15

PASSO A PASSO, ISTO É


Os livros-objetos Poemóbiles (1968-1974) e Caixa preta (1975) são, para dizer o mínimo, dois pontos elevados, tão luminosos quanto complexos, da ainda pouco estudada relação estabelecida, no Brasil, pelo menos da década de 1950 em diante, entre a poesia e o design. Destinam-se, tais obras, àquele raro tipo de leitor/a que, mais do que receber, já pronta, uma determinada “informação textual”, aceita o desafio de tornar-se conviva de uma festa intersígnica na qual o sentido, para se materializar, precisa ser elaborado passo a passo, isto é, olhar a olhar, toque a toque, timbre a timbre, ritmo a ritmo, dobra a dobra, vozeio a vozeio, palavra a palavra, letra-imagem a letra-imagem, silêncio a silêncio.

Poemóbiles e Caixa preta são obras complexas, como dito linhas atrás, porque, entre outros motivos, tensionam os limites do trabalho em cooperação entre designers e poetas. Não há, a partir da contemplação de tais peças, lugar para “opiniões” taxativas acerca das caducas oposições dicotômicas entre arte e técnica (e, consequentemente, sobre o papel “específico” de cada um – poeta e designer – na formulação e no desenvolvimento do projeto) porque Augusto de Campos (1931) e Julio Plaza (1938-2003) são artistas que se movem naquele espaço (inter)sígnico de liberdade que faz do poeta um “designer de linguagem”, conforme a conhecida premissa do poeta-crítico Décio Pignatari.

Numa rápida tentativa de leitura, pode-se definir Poemóbiles como um conjunto de objetos tridimensionais, de forma e dimensões regulares, que, abertos, em “perspectiva pop-up” (Ana Paula Mathias de Paiva, in A aventura do livro experimental no Brasil – Autêntica/Edusp, 2010), fazem saltar da dupla lâmina – à semelhança de uma página aberta – vocábulos grafados, nas três cores primárias, sobre estruturas entre “geométricas e orgânicas”. Impressiona nessa série o fato de ela resultar de uma intrincada urdidura gráfico-visual que propicia, surpreendentemente, uma ludicidade que confere à obra inquestionável dimensão performativa.

Trata-se, em precaríssima suma, de um livro que: 1) põe em questão a noção predominante de livro; 2) avança na direção aberta pela poesia concreta quanto à possibilidade de uma ars poetica não limitada ao primado do verso; 3) concilia de modo indissociável a visão e o tato do/a leitor/a, que é, assim, retirado da costumeira passividade diante da palavra escrita a que séculos de predomínio do logocentrismo nos reduziram; 4) recupera e radicaliza a noção poundiana da “crítica via criação”, posto que o projeto Poemóbiles teve início quando Augusto, convidado por Plaza a escrever uma introdução crítica  para o livro Objetos, respondeu com um poema que integra-se à infra-estrutura da obra que deveria analisar.

A Caixa preta, por seu turno, segundo o poeta e ensaísta Antonio Risério (Ensaio sobre o texto poético em contexto digital – Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1998), que “descende em linha direta das caixas de Marcel Duchamp, a Caixa verde (1934), e a Caixa valise (1938-1941)”, tem título que “foi capturado no terreno da cibernética (“Problema da caixa preta”). Só por aí já se vê o empenho do poeta-designer e do designer-poeta em expandir ainda mais os horizontes de seu projeto cooperativo – do qual toma parte, também, o poeta-cantor Caetano Veloso, que grava, para o pequeno disco que acompanha o volume, uma vocalização nua e crua, tão weberniana quanto lupicínica, do poema dias dias dias, dedicado por Augusto à sua musa, Lygia.

Dada a exiguidade do espaço disponível para este, mais que texto de apresentação, bilhete de embarque, ficam os votos de uma excelente viagem para quem se dispuser a embarcar nestes dois imprescindíveis exemplos de inventividade poética legados por dois dos nomes mais representativos da arte do século XX.

Ricardo Aleixo
(poeta, artista visual/sonoro
e pesquisador de poéticas intermídia)

Texto escrito especialmente para a mostra
O papel do poeta, em cartaz na 

Galeria de Convergência
do Museu de Arte Murilo Mendes,
em Juiz de Fora (de 18/12/2014 a 16/03/2015),
com curadoria de Afonso Rodrigues.